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Cristiane Sobral e a literatura negra: “Não quero ter amarras, quero escrever”

Foto do escritor: Cara e Cultura NegraCara e Cultura Negra

Atualizado: 7 de mar. de 2019


Atriz, dramaturga, poeta e escritora com oito livros publicados, Cristiane Sobral é um

dos grandes nomes da chamada literatura negra e participará da programação do

Festival Cara e Cultura Negra em 2019. Em entrevista exclusiva, a fluminense radicada

em Brasília em 1990 comemora o reconhecimento de seu trabalho, tema inclusive de

teses acadêmicas. Mas relata que seu caminho, como o de outros autores negros, sempre

foi cheio de obstáculos. Diretora do Sindicato dos Escritores e dona da cadeira 34 da

Academia de Letras do Brasil (ALB), ela contextualiza o que é a literatura negra no

Brasil e cita outras figuras históricas que fizeram a diferença para consolidá-la.


Entre críticos e acadêmicos é ainda controverso, mas você acredita que existe de fato uma

estética literária negra?


Eu tenho certeza que existe, não é uma coisa de agora e há vários estudos acadêmicos que falam sobre essa literatura negra. Um exemplo é que, em 1978, ano em que foi fundado o movimento negro no Brasil, constitui-se um grupo de militantes e escritores que até hoje publicam, os Cadernos Negros. Alguns deles já faziam estudos que identificavam a escassez de escritores negros na literatura brasileira. E ainda o fato de que, muitas vezes, quando eles publicavam, tinha que ser seguindo a norma padrão dentro de um conceito de certa invisibilidade, devido à condição de racismo do país. Por exemplo, sabemos que Machado de Assis era negro, mas isso não era dito e ele, apesar de ter consciência de sua negritude, vivia num momento histórico em que não se podia ter

contornos da chamada literatura negra. Mas já consideramos o Lima Barreto um representante da literatura negra, em que a gente encontra aspectos crítico-literários diversos e questões específicas quando ele afirma a negritude.


Então não se trata só de ser um escritor negro?


Isso, não basta um autor ser negro para ele fazer uma literatura negra. Ele pode escrever sobre quaisquer temas. Isso que a gente chama de literatura negra, que foi o que os Cadernos Negros começaram a fazer, foi o querer-se negro nesse espaço da literatura. Foi um compromisso estético de representação de negros e negras tentando desafiar os padrões e estereótipos que normalmente a literatura brasileira tem traçado quando nos apresenta.


Quais são esses padrões?


Mulheres negras como objeto sexual ou como empregadas domésticas, o homem negro como subalterno, alcoólatra, presidiário. E quase nunca destacando positividades que se referem à cultura negra. Então era uma literatura feita por brancos defendendo seu padrão estético, que é o da branquitude que predomina no Brasil. Então, quando estou falando de literatura negra, estou falando de, ao escrever sobre qualquer tema, colocar ali meu ponto de vista enquanto uma mulher negra que se assume, se quer e se exalta como negra, que saúda suas irmãs negras, reverencia sua ancestralidade, pesquisa quiçá elementos de línguas africanas para incorporar ao texto. Mas a literatura negra não é só para pessoas negras, é um campo estético que se produz para [todos os] leitores. Isso é muito importante de se reforçar, é um movimento estético.


E quais são os elementos estéticos da literatura negra?


Existem hoje muitos estudos acadêmicos que defendem essa literatura negra e apontam que, assim como o haicai tem suas normas estéticas, ela também tem seus pressupostos, que procura subverter. Tenho um poema que se chama Pixaim Elétrico, em que uso expressões normalmente usadas em contexto negativo, como cabelo crespo, e traço noutro aspecto totalmente valorizando o poder pessoal, na medida em que a pessoa se aproxima mais do que ela realmente é. Essa é a literatura negra. Mas não há homogeneidade, cada um tem seu jeito de ser negro e se colocar como tal.


Há essencialmente um discurso militante?


Não, há algumas pessoas que fazem protestos militantes e publicaram algumas vezes nos Cadernos Negros. E muitos críticos oportunistas se apegam a isso para dizer que o que a gente está produzindo não é literatura, é um manifesto panfletário. Essas pessoas enquanto consistência de obra não têm nem quantidade suficiente para fazer uma avaliação literária, mas é nisso que se apegam. Eu, por exemplo, escrevo há 18 anos e tenho 8 livros publicados. Não dá para dizer que não tenha desenvolvido alguma estética, esteja só fazendo manifesto panfletário. Até pela permanência e produção sistemática nesse campo, a estética já se constitui. É o caso de Conceição Evaristo, Miriam Alves, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, que a própria academia rechaça por conta dos “erros de português”, como se fosse apenas esse caráter linguístico que definisse sua produção.


Quem são essas figuras contemporâneas e o que as caracteriza?


A gente caracteriza a literatura negra lá no século XIX, com uma obra chamada Úrsula, da Maria Firmina dos Reis, um romance que nos faz perguntar “como pode uma mulher naquela época, com a liberdade que as mulheres não tinham, conseguir falar da mulher negra daquela forma?”. Então a gente considera aquela obra um marco da literatura negra. Já hoje em dia temos a Conceição Evaristo e a Miriam Alves, que são romancistas, poetisas e contistas e estão desde a criação dos Cadernos Negros. Elas estão produzindo suas obras em que pese toda a discriminação do mercado editorial. A Conceição Evaristo, por exemplo, publica numa editora que só recebe escritores negros (Malê). Sua primeira obra foi publicada com uns 60 anos de idade, porque ela não conseguia reconhecimento dentro do mercado editorial. Aí quando surge uma editora de autores negros as pessoas dizem que somos racistas, “para quê uma editora negra”? As minhas publicações também

foram todas independentes até chegar à Malê, por onde publiquei dois livros.


Você sente alguma pressão para sempre falar de temas “engajados”? Ou o contrário, para não falar tanto sobre isso?


Escrevo sobre a humanidade, falo de amor, alegria, desejo, erotismo, feminilidade, todos esses temas fazem parte da minha obra e, se me coloco como engajada, eu perco um monte de gente que nunca vai me ler por achar que vou só falar de direito para o negro e racismo. Mas sou cobrada demais, dos dois lados, isso que é triste. É do lado do branco, que me discrimina achando que não escrevo nada do interesse dele, e é do lado do negro, que também acha que eu preciso falar sempre de um tema só. Não quero ter amarras, quero escrever. Lógico que quando estou escrevendo uma personagem feminina, eu como mulher tenho meu compromisso político com a maneira que a represento. Eu procuro mostrar sempre um ponto de vista de insubmissão, não a mulher responsável por todas as

suas mazelas, mas que tem um campo social em que ela está inserida. Posso falar da violência, mas também de amor e sou uma romântica incorrigível. Essas contradições eu amo na minha escrita, sou uma mulher real, que vive as agruras de seu tempo.


Mas de que forma é possível se distanciar desses rótulos?


Ser negro numa sociedade racista é 24 horas, não é uma fantasia de carnaval, não tem como não ser negra escrevendo. Tenho vários personagens brancos e ainda assim é uma mulher negra escrevendo um personagem branco. Isso muda alguma coisa. Um dos elementos da estética negra é este: o ponto de vista do escritor. Ele escreve sobre literatura fantástica ou uma história de terror, mas ainda assim é uma pessoa negra escrevendo. A gente é tão amarrado com isso de poder escrever isso e não aquilo, mas é incrível a infinidade de coisas que se tem para escrever e ainda colocam o negro sempre no lugar de falar da militância. Gente, eu quero falar do Óvni que caiu e era todo mundo lilás! E ainda assim posso estar discutindo o racismo, se eu quiser. Que a gente possa ter um campo livre de criação, como todos os outros autores tiveram, como a Clarice Lispector, que escreveu sobre tudo. Ninguém estava cobrando dela “ah, dessa vez você está falando sobre a mulher, né?”, mas ela nunca deixou de ser mulher escrevendo. Só que sobre o negro tem essa cobrança, não pode nada. 


E há uma forma de mudar esse pensamento e formar novos leitores da literatura negra?


A gente tem uma lei que obriga o ensino da história da África nas escolas há 15 anos, mas quantos livros de autores negros os alunos leem? No máximo Machado de Assis, sem saberem que ele era negro. Aí não adianta. Quando a gente fala em estudar a história do negro é apresentar Conceição Evaristo e contar que ela era de uma família onde todas as mulheres eram empregadas domésticas e hoje ela é doutora e publicou seis livros. Qual é a representatividade disso para uma criança que está sentada num banco escolar e é pobre? E para um rico que amanhã, na hora de contratar um funcionário, não vai excluir alguém por causa da cor? Então é importante não só na escola pública, é em todos os lugares. Falta visibilidade. A gente existe, mas não é visto. Para conseguir visibilizar qualquer coisa que está fazendo é uma luta muito maior. Espontaneamente isso não vai acontecer. E visibilidade só existe com reconhecimento. Fazer cumprir essa lei já seria alguma coisa. Pelo menos todo mundo sairia da escola entendendo melhor essa realidade.


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